2002 - parte IV
Abril 01, 2002
6.
Vou arrancar os sonhos do meu peito,
estilhaçá-los como vidros e deixar de acreditar.
Vou semear um deserto de plantas rarefeito,
afogar-me na maior das dunas e deixar de sonhar.
Não se realizou até hoje um só inconsciente querer,
por mim, pelos outros ou por Deus todos fugiram.
Quero agora, mesmo que chorando, adormecer
e desistir dos sonhos que de mim desistiram.
Não mais alimentarei paixões de Alma,
que se sobreponha a mente ao coração,
se no Espírito não encontro calma,
também desisto da frágil recordação.
Antes a alegre ignorância do tolo e contente
que este sofrimento de quem luta por sonhos.
Antes a paz dos enterrados em terra doente
que esta guerra de sentimentos medonhos.
Passo a preferir o projecto ao sonho!
7.
Fechei os olhos neste preciso momento,
não sou eu que escrevo, mas o meu desejo de te abraçar.
Viajo deste mundo de lágrimas na esperança de alcançar o teu.
Longe ou perto que interessa? Mesmo daqui seguro as tuas lágrimas
com as minhas e guardo-as juntas no mesmo coração,
no coração grande que habita o Todo.
Depois abraço-te num sorriso e segredo às tuas mágoas
que não preciso dos meus braços,
que não preciso das minhas mãos para as estrangular,
preciso apenas de te amar e que com esta forma tão especial
de amor que a ti te destino, também não preciso do teu beijo
para suster o meu pranto, preciso apenas do teu sorriso.
8.
Estou bem assim,
não preciso de mais nada.
Obrigado, mas não.
Chove sangue no meu quarto
e é quanto me basta.
9.
Almada, 14-11-2002
com a memória e o coração no
dia 12 de novembo de 2002.
por vezes um anjo desce dos céus
e rasga a dor do mundo com mãos de ouro
(e basta-lhe apenas o amor)
10.
Ergue-te minha Deusa,
dança acima do solo
ao ritmo deste Allegro e vem,
vem sereia encantada,
eu espero sem sofrer,
mas vem. Vem e alimenta
a minha alma com a sinfonia
de sentidos que habita
o rio de água cristal
que corre em tuas veias.
Ergue-te minha Deusa,
ergue-te por entre a orquestra
de prazeres secretos
que respira a tua música,
ao rumor dos tambores
abre serena os braços,
faz da melodia dos violinos
a harmonia dos teus passos
e conduz o teu corpo,
à casa onde habita o sonho.
Ergue-te minha Deusa,
não venhas porque te amo,
mas vem se me amares,
pois quero compor contigo
a mais bela de todas as óperas,
a mais intensa das sinfonias,
a mais completa de todas as obras,
a mais perfeita poesia.
Só depois poderei sonhar
o poema que me falta cantar.
11.
I.
Acordado, sonhei que amava uma Margarida,
que se despia ao sabor de cada momento,
transformando a noite em contentamento
e a distância impossível em voz querida.
O seu corpo encerrava os prazeres do mundo
e inventava a sensualidade no espaço mudo,
e onde o silêncio mais que muito era o tudo,
nasceu o que se ouve só no prazer profundo.
Sem que pudessem as minhas mãos tocar-lhe,
sem respirar o aroma que adivinho supremo,
sem o sabor do beijo que antevejo divino,
mas com o erotismo de um cisne, a enfeitar-lhe
os movimentos, provocou o deleite extremo
e enfeitou a minha noite como hoje a ilumino.
II.
E a fina branca flor, que sonhei nua e minha,
alimentou-se dos meus olhos em puro desejo
e mostrou-me no nu desfolhado que ainda vejo
as estradas por onde com ela o amor caminha.
Protegida pelo calor, dançava o amor sozinha,
despia-se e tornava-me fogo sem um só beijo,
tocava o corpo em flor, em sensual doce festejo,
com toques meigos que da volúpia faziam rainha.
Desciam-lhe os dedos do pescoço aos ombros,
caminhavam em prazer entre o ventre e o peito
e com as formas que desenhava no ar sereno,
reduziu a minha sólida solidão a escombros,
iluminou a noite com um dia de prazer perfeito
e fez da revoltada tempestade mar ameno.
12.
E eis que surge o amargo silêncio nas selvas eléctricas,
onde palavras escritas substituem as que não dizemos,
quando olhares se cruzam para anular as simétricas
necessidades de falar sobre aquilo que não podemos.
onde se escondem queridas princesas do meu universo?
voltem para esta insensata selva onde estou submerso.
Faltam-me as vossas palavras e falta-me o ar que respiro,
não me deixem por isso sozinho neste demente retiro.
Sei que são fracos os versos que vos escrevo,
mas é forte o desejo que os imagina suficientes
para voltar a dançar ao som do frenético frevo,
que oiço quando leio as vossas palavras quentes.
13.
Terás tu um dia o tempo que preciso
para fazer do meu desejo o teu?
O tempo para fazeres do teu sorriso o meu?
Sem segundos, sem horas, o tempo indiviso,
o momento que de finito faremos eterno,
de nosso universal e de único reflexo infinito,
o instante feito sempre e o verão inverno.
Terás tu um dia este tempo, que limito
ao outro infinito, ao pouco que te escrevo,
para inventarmos o nosso próprio desmedido?
Eu, tu e o antes inalterável, a sós,
a recuperar o que andou perdido,
a inventarmos de novo a palavra nós.