fevereiro 2003
Fevereiro 01, 2003
1-2
Nasce
o tempo
e o rio
na nascente
da vida,
navega
um barco
no rio
e eu rio-me
ao leme
e corre o tempo
e corre a tempo
de lá chegar.
E vai o barco
e vai vida
e volta louca
por lá voltar
mas vem a morte
e vem a tempo
e vem do rio
e vem no barco
e vai a vida
e fica o tempo
e morre o rio.
2-2
Hoje foi diferente:
ficámos em silêncio
e os nossos corpos
falaram por nós.
Os teus olhos
substituiam a lua
e anunciavam tudo
segundos antes
de tudo acontecer.
Depois da coragem
do primeiro grito
brilhaste
e amanheceu
só para nós.
Depois o silêncio
e a lua novamente,
apagada no céu,
a brilhar
no teu peito.
6-2
Há momentos assim, momentos de silêncio em que o silêncio
se veste de si e se eleva à condição de mensageiro sagrado
entre dois mundos que se entendem num olhar surdo e mudo,
entre dois mundos que se entendem numa melodia de gestos
há muito oferecidos pelo lado de dentro da sua existência.
Nesses calados momentos, a massa densa que habita as almas
dos amantes, envolve-os com um colorido manto de retalhos,
geometricamente costurado com a linha de vida que os une,
e recorda-lhes os momentos de maior som que os permite amar
também na sua ausência. Que os permite amarem-se em silêncio.
6-2
Afogo-me de medo em cada lágrima que escondes no mar, imenso rochedo
que te veste nestes dias, imitando a lua em dias de eclipse, escondendo o sol.
Talvez por isso, não navegue em ti neste escuro eclipse como em noites de
amarga e trovejante tempestade. Talvez por isso, prefiras navegar sozinha.
10-2
Na noite, nosso dia, o infinito e o tudo são escassos,
o ódio e a mentira fracassos, os nossos corpos alegria
e a nossa dança poesia
– a vida nos nossos braços.
Na noite, nosso jardim, ao sabor da textura do amor,
experimentamos a loucura e pingam estrelas de ternura
com cheiro a alecrim
– a vida em pedaços de calor.
11-2
que
borboleta
ilumina
a
cor
que
trazes
nos
olhos?
que pássaro voa no teu peito?
porque
te
amo sem conhecer
o sabor do amor?
11-2
vida toupeira, desperdício genético,
na cegueira colectiva faço apenas o que me obrigam
tão pouco é o ar que respiramos
catacumbas espirais, túneis em chamas
que não chegam nem levam a parte alguma do céu
tão pouco é o ar que respiramos
estou no lado errado da lua,
numa sala fechada pela orgulhosa ignorância
de um gorila que navega à deriva
protegendo-se das tempestades de merda
que ele próprio inventa
com a máscara do conforto
tão pouco é o ar que respiramos
pouco interessa
tão pouco é o ar que respiramos
nada que me interesse
estou rodeado de orgulhosos poços de saber,
profundos abismos oceânicos povoados de conhecimento,
formas de vida desprovidas de vazio, tudo as preenche
na totalidade e,
imagine-se,
basta-lhes uma moeda
para responderem a todas as necessidades alheias
até eu, cápsula de cianeto, posso mergulhar
e afogar-me nesse mar de erudição sem perigar
qualquer outra espécie viva ou já morta
mas faço apenas o que me obrigam
no último sopro da toupeira
mascarada pelo conforto
que escasso
é o ar que respiro nestes túneis
12-2
não há pingo de cera
que caia das velas que acendo
que não me deixe uma marca na pele
a altas ou pequenas, finas ou largas,
aromáticas ou simplesmente velas
a mesma entrega (resignação?)
ao ciclo que as comanda
para além da minha vontade
a cada uma um fósforo
o fascínio de as ver arder
primeiro paixão fogo dilacerante
depois chamas vestidas de hábito
ardem derretem marcam-me o corpo
irreversíveis
consomem-se totalmente
extinguem-se deixando-me apenas
o rasto, pegadas na praia deserta,
marcas de quem por aqui passou
por vezes o vento
apaga algumas delas ainda a meio
gasto um ou outro fósforo a mais
e reacendo-as para que se apaguem
mortas com a mesma dignidade
continuo no entanto
a iluminar o meu quarto
com a luz serena
de uma vela que arde
para morrer
perdi a esperança
de encontrar a vela eterna
e limito-me a consumir uma vela
após outra até que uma delas
se extinga depois de mim.
12-2
O tempo também pode acabar
o tempo mergulhou no mar
depois de uma dose demasiado forte de heroína.
desta vez as ondas recusaram ajuda
enrolaram-lhe o corpo, quebraram-lhe os ossos
e arrastaram os segundos, os minutos e as horas
para as profundezas escuras do oceano
já não é senão carne apodrecida
a quem nem o mais faminto habitante
da profunda cidade do inferno
ousa tentar digerir. sozinha, a morte salva-o do mar.
o tempo acabou
depois de uma dose demasiado forte de heroína.
o tempo acabou.
off.
17-2
por todo o mundo
existem as praias
e as ondas
que as alimentam,
porque o mar,
outrora mudo,
precisou de inventar
as mais belas metáforas
para dizer que te ama
por todo o mundo
existem os poetas
e as palavras
que alimentam,
porque o homem,
outrora mudo,
precisou de inventar
as mais belas metáforas
para dizer que te ama
por todo o mundo
existes tu
e os sonhos
que alimentas,
porque deus,
vendo-me mudo,
precisou de inventar
uma forma secreta
de fazer-me sonhar.
18-2
sempre sonhei
não escrever este poema
mas
há uma faca e um vaso vazio de mim no lugar que reservava aos livros
cansei-me
das palavras e
d os espaços
preenchidos
por ti
acabaram
os poemas de amor
se os houve
acabaram os poemas
do erotismo
que
inventávamos
existir
nos bancos de jardim
onde nascemos gravei a nossa morte em letras fundas
e nada mais.
17-2
Poema ditado pela Lua
durante a noite, a lua estendeu devagar
os braços e abriu a janela do meu quarto
com um sorriso nos dedos de prata fina.
deixando lá fora a noite na mais perfeita escuridão,
entrou, afagou o meu cabelo molhado de lágrimas
e deitou-se na minha cama de espinhos de roseira,
falou-me com a voz tranquila de luz cor de platina
e cúmplice revelou-me os segredos dos deuses sagrados
que eternos comandam no tempo a vida e a beleza viva
Ana, entendo agora porque nasce o dia no teu corpo,
porque não sangram as feridas dos espinhos na cama
e porque se esconde rendido o sol por trás do teu peito
19-2
um banco de jardim
não é mais que um banco de jardim
mas existe a madeira de que é feito
assim como existe a lua, o sol e a Ria de Aveiro
o mundo fora da gaveta
onde escondemos as crónicas de sempre
20-2
as ruas, as prostitutas e os reflexos nas poças
de salácia lamacenta permanecem indiferentes
ao nascer por entre as nuvens do lilás difuso
quase de chuva, quase de esperança, quase de janeiro.
às portas de casas, onde a luz não ousa nunca,
trocam-se vidas por dinheiro, vendem-se restos
e aponta-se a dedo o caminho para o lado frio do sol,
como eu, insensíveis à escassez de ar que nos rodeia,
outros teimam também em enterrar os olhos no chão
enegrecido pelo tempo ou pelo sangue cuspido
pelos nossos alvos. nada vemos e nada falamos
e nada fazemos e nada. nada. a dependência da morte
adormece com o corpo moldado às curvas das esquinas
e das escadas que atravessamos mas preferimos saltar
dois degraus ou usar outro quarteirão. nada a fazer.
nada fazer. ser assaltado à mão armada pela vida
e não apresentar queixa ao faroleiro que diariamente
acende e ilumina o rumo que decidimos não escolher.
venham, venham. conheçam a Lisboa romântica,
o Tejo inspirador, os recantos dos poetas, os jardins,
as colinas e os miradouros, os restaurantes, os bares
e as casas e palácios de reis e romances eternos.
aproveitem e não se esqueçam de conhecer também a outra,
a que se alimenta do lixo que sobra dos roteiros turísticos,
a que dorme nas arcadas da Almirante Reis, junto a montras
de lojas que na sua maioria, por curiosidade ou ironia,
exibem camas e mesas compostas. coincidência certamente.
28-2
Era forte
aquele forte
que elegemos
como morada
e transporte
do amor
que agora
não é
senão nada
Já não
demora
por isso,
o instante
gigante,
o segundo
feito hora,
o diminuto
minuto
vestido
a preceito
que fará
da sorte
de outrora
a morte
de agora.
Vou-me
embora
de ti,
vou nadar
daqui
para fora,
pois já nada
me vale
neste vale
onde outrora
um coração
nadava
hora após hora
na direcção
apontada
pela ponta
afiada
de um beijo
teu
ou de um
desejo
meu.
Sim,
é verdade,
abandono
o barco
assim,
sem mais,
já não tenho sono
nem piedade
de ti
ou de mim.
Cheguei
ao fim
do cabo
das minhas
tormentas,
vou atar-me
com um cabo
de sangue
aqui mesmo,
na encosta
mais íngreme,
vou pendurar-me
de costas
para ti
e morrer-te
a olhar
o mar.
A Deus,
peço
apenas
a força
e a forca
para este Adeus.
Adeus.
No Vale
Sem Sorte,
soprou
um vento
de norte,
trouxe
com ele
a morte
até ao cabo
onde pendurado
por um cabo
estava
o forte
e o amor
de outrora
ou o nada
de agora.
Não durou
nem mais
uma hora.
28-2
lembras-te de prometer espelhar a minha pele todos os dias?
espreita para aqui com as estrelas de ver que tens no coração,
vês este cinzento? é a minha pele enfraquecida pela falta,
já nada reflecte pois não? está então quebrado o acordo.
não mais precisas de me espelhar, de te procurares em mim,
28-2
pouso telemóvel sobre a mesa e as mãos sobre o teclado, espero uma mensagem ou palavras que afastem o medo. acendo mais um cigarro e olho para o monitor, ninguém.
tudo está imóvel à minha volta, os livros fechados na estante, as figuras do século vinte na parede, a fotografia do meu pai, as folhas com palavras rasuradas por não serem de ninguém.
a um canto, um cinzeiro meio cheio e um caroço de maça mal acabado lutam entre si, noutro, um espelho partido espalha fios de luz amarela distorcidos pelo fumo vivo do cigarro. olho novamente os contactos do messenger, ninguém.