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Red Tales

(...) cá estou eu, por aqui, a fingir que sou eu que por aqui estou (...)

Red Tales

>> Cuidemos de Todos Cuidando de Nós <<

 

Alguns dos textos aqui contidos são de cariz sexual e só devem ser lidos por maiores de 18 anos e por quem tiver uma mente aberta. Se sentir algum tipo de desconforto com isso ou se não tiver os 18 anos ou mais, por favor SAIA agora.

...

Abril 13, 2008

 


Era ainda noite cerrada quando Alberto chegou à praia. A lua, prateada, ainda muito alta, pintava rastos luminosos na superfície serena do mar. Não havia estrelas, talvez nuvens altas as escondessem. Ou talvez não, talvez fosse apenas a noite, a deixar Alberto a sós com as duas companhias que mantinham viva a imagem de Tomás. O marulhar das águas, o leve sussurro das pequenas gotículas de amor que se desprendem do mar, erguia-se numa melodia solene. Muito solene, mas muito discreta. Fora isso, tudo o resto era silêncio. Tudo o resto eram sombras, trevas, memórias. Assim que pisou a areia, Alberto enterrou os olhos nos seus próprios passos e percorreu muito lentamente o caminho até ao local onde mais Tomás existia. Depois de meia hora, sem olhar nunca o mar, Alberto sentou-se a não mais de um metro da linha que sempre ousou separar o seu mundo daquele que pertencia a Tomás. Nas suas costas, as redes dos pescadores, espalhavam-se ao longo de vários metros, protegidas pela noite e pelo frio, um labirinto imenso de pequenos quadrados. Alberto pousou a cabeça sobre os joelhos, com a testa bem apoiada sobre ambos, cruzou as mãos sobre a nuca e falou para consigo num tom de voz que se misturava com o cantar suave do mar à sua frente. Procurava a coragem que lhe faltara durante um ano.


 


– Existe algo de luminoso nestes cegos e nocturnos ventos que sopram junto ao mar. Talvez sejam os sonhos desenhados pelo rugir das ondas e da lua que as ilumina. Ou talvez não. Talvez seja eu. Há um ano e um dia que não sentia esta mar refrescar-me a pele como agora, Tomás. Hoje voltei. Voltei para cumprir a promessa de vos devolver um ao outro. Preciso primeiro da tua coragem, depois devolvo-te ao único lar que amaste.


 


As mãos correram-lhe lentamente. Com os dedos ainda cruzados sobre a cabeça, empurrou a testa contra os joelhos, despenteou-se, separou as mãos e deixou-as descer, unhas cravadas na pele, até que se agarrassem aos tornozelos despidos. Como se prendesse as recordações, para que o não impedissem de cumprir a promessa feita a Tomás, enrolou todo o corpo e abriu ligeiramente as pernas, fechando-as de seguida e prendendo a cabeça entre elas. A fotografia era devastadora. Um homem, um espírito, um corpo enrolado a projectar uma sombra disforme sobre os reflexos brancos que brilhavam na superfície húmida das areias abandonadas pelo mar.


 


– Quero ver-te nadar uma última vez. E quero que nades como se fosse o mar a nadar pelo teu corpo. Como sempre fazias. Vou esperar que nasça o sol e, orgulhoso, ver o mar nadar no teu corpo uma última vez. Que inveja de menino eu sentia quando nadavas para além dos limites do pontão. Ou quando pela primeira vez atravessaste o rio ao lado do pai. Eu fiquei na margem, a fingir o orgulho que hoje sinto de verdade. Ainda recordo cada braçada que deste contra a corrente da foz. Quase consigo contá-las. Recordo também as vozes, ali perto. Olha aquele miúdo. Tão pequenino. Repara como ele nada. E vai mesmo conseguir atravessar sozinho. E conseguiste. Sem ajuda. Só anos mais tarde consegui a coragem e a força necessária para atravessar o rio naquele local. Junto à foz, onde as correntes se misturam, só os grandes podiam nadar. Os grandes e o Tomás. Os grandes e tu. A mãe, orgulhosa, sorria e dizia a todos quanto se admiravam, é o Tomás, é meu filho. Parece um peixe. Eu escondia-me, para que ninguém me perguntasse se era também capaz de nadar como tu. Parece um peixinho, dizia a mãe. E parecias, Tomás. Vou esperar que nasça o sol para me orgulhar de ti mais uma vez, depois devolvo-te ao teu único lar.


 


Desde muito menino que Tomás descobrira o seu fascínio pelo mar. Enquanto os outros miúdos de seis anos jogavam à bola na praia, Tomás limitava-se a ficar sentado, quase na mesma posição agora usada por Alberto, mas com o queixo bem apoiado sobre os joelhos, para que pudessem os seus olhos de criança contemplar a imensidão a que chamava casa. Quando por ali não estava, era fácil descobri-lo, junto aos pescadores, ajudando-os a espalhar ou a recolher as redes enquanto ouvia, de olhos brilhantes e sorriso rasgado, as histórias sem tempo que os mais velhos contavam. Outras vezes, quando conseguia escapar-se ao olhar atento do pai, que lhe dizia ser perigoso fazer aquilo, ajudava os pescadores a tirar a rede do mar. Por causa do peixe-aranha, Tomás. Não podes, fica aqui ou vai jogar à bola com os teus amigos. Mas o Tomás nunca teve medo do peixe-aranha. Força, Tomás. Os pescadores gritavam e incentivavam o pequeno Tomás. Vai, força, vai. Sem a tua ajuda não conseguiríamos, Tomás. E lá ia ele, quase pendurado na rede, quase sem tocar com os pés no chão. Que prazer, que sorriso.  




Tomás não tinha ainda dez anos quando pela primeira vez se escapou à vigilância de toda a família para se juntar aos pescadores e ao mar. Deixou que todos adormecessem, levantou-se já vestido, saiu pela janela do quarto que dividia com Alberto e correu até à praia, até casa. Talvez tenha sido também a sua primeira desilusão. Os pescadores mais velhos obrigaram Tomás a prometer que voltava para casa, explicaram-lhe que não podia ir com eles e que devia ir para casa, dormir e voltar mais tarde para os ajudar com as redes. Só mais tarde, muito mais tarde, compreenderia a resposta dos pescadores. Mas Tomás ficou na praia. Escondido. Com os olhos tão salgados como a água que os outros cortavam no barco, chorava de raiva e de tristeza. Não compreendia porque o deixavam ali na praia, se sempre gostaram da ajuda dele. Mas ficou por ali, a chorar, à espera do regresso dos seus companheiros. Tinha prometido ao mar que hoje ficaria com ele toda a noite e não queria faltar a essa promessa. E esperou... esperou... esperou até adormecer. Adormeceu e acordou apenas com o sol e com os gritos dos pescadores que regressavam. A luz estava muito forte e Tomás via uma estrela brilhar perto de cada pescador. Esfregou os olhos com força e voltou a focar a azáfama dos companheiros, depois sorriu, sorriu muito. Levantou-se e correu em direcção aos seus únicos amigos. Reuniu todas as forças que tinha e correu. Já não havia raiva, já não havia tristeza, apenas um grande sorriso. Tomás corria pela areia, humedecida pela noite, marcando-a com os seus passos de fascínio. Corria e ria-se de prazer. De alegria.


 


– Olá capitão Velho, bom dia!


 


– Bom dia, Tomás. Já por aqui? Vens ajudar? Olha que bem precisamos.


 


– Sim – gritou Tomás – mas primeiro...


 


Mas primeiro Tomás tinha que experimentar a água, despiu-se e atirou-se ao mar. O capitão Velho e outros pescadores olhavam para Tomás e o primeiro sorriso do dia desprendia-se-lhes das faces cansadas. Depois de algumas braçadas, só em cuecas, Tomás agarrou-se à rede e gritou:


 


– Vá, parem de rir! Isto não é nenhuma brincadeira. Puxem – gritou, sem se esquecer de prolongar a primeira sílaba, como fazia o capitão Velho. – Puuuuuxem!


 


Regressou a casa, já depois das onze da manhã, com um ou dois quilos de carapau miúdo que o capitão Velho lhe tinha dado como pagamento pela ajuda. Pouco, o suficiente para escapar à fúria preocupada do pai, que desde muito cedo não parara ainda de telefonar para os amigos de Tomás e Alberto. Não se escapou foi ao castigo que o impediu durante duas semanas de voltar à praia.


 


 


 


Mas, depois de uma noite de inverno tão clara para Alberto e para os pais como tantas outras, uma manhã nasceu e morreu negra sem que Tomás voltasse a casa.


 

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