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Abril 13, 2008
Era ainda noite cerrada quando Alberto chegou à praia. A lua, prateada, ainda muito alta, pintava rastos luminosos na superfície serena do mar. Não havia estrelas, talvez nuvens altas as escondessem. Ou talvez não, talvez fosse apenas a noite, a deixar Alberto a sós com as duas companhias que mantinham viva a imagem de Tomás. O marulhar das águas, o leve sussurro das pequenas gotículas de amor que se desprendem do mar, erguia-se numa melodia solene. Muito solene, mas muito discreta. Fora isso, tudo o resto era silêncio. Tudo o resto eram sombras, trevas, memórias. Assim que pisou a areia, Alberto enterrou os olhos nos seus próprios passos e percorreu muito lentamente o caminho até ao local onde mais Tomás existia. Depois de meia hora, sem olhar nunca o mar, Alberto sentou-se a não mais de um metro da linha que sempre ousou separar o seu mundo daquele que pertencia a Tomás. Nas suas costas, as redes dos pescadores, espalhavam-se ao longo de vários metros, protegidas pela noite e pelo frio, um labirinto imenso de pequenos quadrados. Alberto pousou a cabeça sobre os joelhos, com a testa bem apoiada sobre ambos, cruzou as mãos sobre a nuca e falou para consigo num tom de voz que se misturava com o cantar suave do mar à sua frente. Procurava a coragem que lhe faltara durante um ano.
– Existe algo de luminoso nestes cegos e nocturnos ventos que sopram junto ao mar. Talvez sejam os sonhos desenhados pelo rugir das ondas e da lua que as ilumina. Ou talvez não. Talvez seja eu. Há um ano e um dia que não sentia esta mar refrescar-me a pele como agora, Tomás. Hoje voltei. Voltei para cumprir a promessa de vos devolver um ao outro. Preciso primeiro da tua coragem, depois devolvo-te ao único lar que amaste.
As mãos correram-lhe lentamente. Com os dedos ainda cruzados sobre a cabeça, empurrou a testa contra os joelhos, despenteou-se, separou as mãos e deixou-as descer, unhas cravadas na pele, até que se agarrassem aos tornozelos despidos. Como se prendesse as recordações, para que o não impedissem de cumprir a promessa feita a Tomás, enrolou todo o corpo e abriu ligeiramente as pernas, fechando-as de seguida e prendendo a cabeça entre elas. A fotografia era devastadora. Um homem, um espírito, um corpo enrolado a projectar uma sombra disforme sobre os reflexos brancos que brilhavam na superfície húmida das areias abandonadas pelo mar.
– Quero ver-te nadar uma última vez. E quero que nades como se fosse o mar a nadar pelo teu corpo. Como sempre fazias. Vou esperar que nasça o sol e, orgulhoso, ver o mar nadar no teu corpo uma última vez. Que inveja de menino eu sentia quando nadavas para além dos limites do pontão. Ou quando pela primeira vez atravessaste o rio ao lado do pai. Eu fiquei na margem, a fingir o orgulho que hoje sinto de verdade. Ainda recordo cada braçada que deste contra a corrente da foz. Quase consigo contá-las. Recordo também as vozes, ali perto. Olha aquele miúdo. Tão pequenino. Repara como ele nada. E vai mesmo conseguir atravessar sozinho. E conseguiste. Sem ajuda. Só anos mais tarde consegui a coragem e a força necessária para atravessar o rio naquele local. Junto à foz, onde as correntes se misturam, só os grandes podiam nadar. Os grandes e o Tomás. Os grandes e tu. A mãe, orgulhosa, sorria e dizia a todos quanto se admiravam, é o Tomás, é meu filho. Parece um peixe. Eu escondia-me, para que ninguém me perguntasse se era também capaz de nadar como tu. Parece um peixinho, dizia a mãe. E parecias, Tomás. Vou esperar que nasça o sol para me orgulhar de ti mais uma vez, depois devolvo-te ao teu único lar.
Desde muito menino que Tomás descobrira o seu fascínio pelo mar. Enquanto os outros miúdos de seis anos jogavam à bola na praia, Tomás limitava-se a ficar sentado, quase na mesma posição agora usada por Alberto, mas com o queixo bem apoiado sobre os joelhos, para que pudessem os seus olhos de criança contemplar a imensidão a que chamava casa. Quando por ali não estava, era fácil descobri-lo, junto aos pescadores, ajudando-os a espalhar ou a recolher as redes enquanto ouvia, de olhos brilhantes e sorriso rasgado, as histórias sem tempo que os mais velhos contavam. Outras vezes, quando conseguia escapar-se ao olhar atento do pai, que lhe dizia ser perigoso fazer aquilo, ajudava os pescadores a tirar a rede do mar. Por causa do peixe-aranha, Tomás. Não podes, fica aqui ou vai jogar à bola com os teus amigos. Mas o Tomás nunca teve medo do peixe-aranha. Força, Tomás. Os pescadores gritavam e incentivavam o pequeno Tomás. Vai, força, vai. Sem a tua ajuda não conseguiríamos, Tomás. E lá ia ele, quase pendurado na rede, quase sem tocar com os pés no chão. Que prazer, que sorriso.
Tomás não tinha ainda dez anos quando pela primeira vez se escapou à vigilância de toda a família para se juntar aos pescadores e ao mar. Deixou que todos adormecessem, levantou-se já vestido, saiu pela janela do quarto que dividia com Alberto e correu até à praia, até casa. Talvez tenha sido também a sua primeira desilusão. Os pescadores mais velhos obrigaram Tomás a prometer que voltava para casa, explicaram-lhe que não podia ir com eles e que devia ir para casa, dormir e voltar mais tarde para os ajudar com as redes. Só mais tarde, muito mais tarde, compreenderia a resposta dos pescadores. Mas Tomás ficou na praia. Escondido. Com os olhos tão salgados como a água que os outros cortavam no barco, chorava de raiva e de tristeza. Não compreendia porque o deixavam ali na praia, se sempre gostaram da ajuda dele. Mas ficou por ali, a chorar, à espera do regresso dos seus companheiros. Tinha prometido ao mar que hoje ficaria com ele toda a noite e não queria faltar a essa promessa. E esperou... esperou... esperou até adormecer. Adormeceu e acordou apenas com o sol e com os gritos dos pescadores que regressavam. A luz estava muito forte e Tomás via uma estrela brilhar perto de cada pescador. Esfregou os olhos com força e voltou a focar a azáfama dos companheiros, depois sorriu, sorriu muito. Levantou-se e correu em direcção aos seus únicos amigos. Reuniu todas as forças que tinha e correu. Já não havia raiva, já não havia tristeza, apenas um grande sorriso. Tomás corria pela areia, humedecida pela noite, marcando-a com os seus passos de fascínio. Corria e ria-se de prazer. De alegria.
– Olá capitão Velho, bom dia!
– Bom dia, Tomás. Já por aqui? Vens ajudar? Olha que bem precisamos.
– Sim – gritou Tomás – mas primeiro...
Mas primeiro Tomás tinha que experimentar a água, despiu-se e atirou-se ao mar. O capitão Velho e outros pescadores olhavam para Tomás e o primeiro sorriso do dia desprendia-se-lhes das faces cansadas. Depois de algumas braçadas, só em cuecas, Tomás agarrou-se à rede e gritou:
– Vá, parem de rir! Isto não é nenhuma brincadeira. Puxem – gritou, sem se esquecer de prolongar a primeira sílaba, como fazia o capitão Velho. – Puuuuuxem!
Regressou a casa, já depois das onze da manhã, com um ou dois quilos de carapau miúdo que o capitão Velho lhe tinha dado como pagamento pela ajuda. Pouco, o suficiente para escapar à fúria preocupada do pai, que desde muito cedo não parara ainda de telefonar para os amigos de Tomás e Alberto. Não se escapou foi ao castigo que o impediu durante duas semanas de voltar à praia.
Mas, depois de uma noite de inverno tão clara para Alberto e para os pais como tantas outras, uma manhã nasceu e morreu negra sem que Tomás voltasse a casa.