Solidão
Janeiro 09, 2021
a melodia de um rio gelado que nos atravessa o peito, uns olhos que se fecham e o calor de um dedo em círculos leves sobre a face, o bater do coração nas pálpebras que encerram um mar escondido e a luz, interrompida a espaços pela voz distante que canta numa língua estrangeira, suficientemente fraca para iluminar apenas o medo de perder para a minha loucura. é tarde, mas aumento o volume da música até sentir cada nota nas veias, a minha pele treme a cada batida profunda e lenta de percussão, os violinos, a preencher o tempo que sobra (sobra sempre tanto o tempo que falta), uma pausa, para afundar como facas os dedos no corpo, e, novamente, uma voz olímpica, a arrancar-me as lágrimas pelos microscópicos espaços entre a dor e o desejo. depois palavras, cantadas em forma de sussurro, palavras que não compreendo, palavras que ferem o que resta de um corpo adormecido pelo coro vazio da existência. está frio, mas a roupa impede a harmonia entre a pele e o que sinto, rasgo-a, tiras de pano, incendiadas pela fúria, caiem suaves sobre a cera do chão, com elas, e com o início da marcha sonolenta das teclas de um piano, cai também a força que me resta, cai também o espírito e secam-se as lágrimas. sento-me a um canto para lentamente contar os objetos que me rodeiam, chegam-me as duas mãos e volta a sobrar tempo e voltam as cordas a preenchê-lo. a sensação aterradora de câmara lenta, os lentos movimentos que a acompanham, a velocidade a que se sucede o nada, o nada que me prende nesta cela húmida de medos. poderia ter-me deitado mais cedo, mas há algo nesta solidão que me fascina e destrói, tenho primeiro de me perder nestes caminhos cruéis que desenhei e desconheço. o som é desordenado e a melodia desaparece, enrolo a nudez nessa pauta enlouquecida e cravo nas pernas as unhas em feridas fundas e sangram as marcas e sangram os sonhos e grito a dor no corpo para que se esqueça de doer a dor na alma.