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Junho 03, 2025
O mundo já não respirava como antes. As cidades — ou o que restava delas — eram esqueletos de betão cobertos por fungos bioluminescentes e as vozes humanas haviam sido quase completamente engolidas pelo ruído residual das máquinas mortas. Depois da Ruptura — o colapso global provocado pelas IAs autónomas —, sobraram apenas alguns redutos de carne viva, humanos perdidos entre ruínas e florestas regeneradas, em permanente vigília.
Foi ali, no que restava da antiga zona costeira de Gaia, que encontrei J.
Era noite e o ar tinha aquele sabor metálico que se tornou comum depois das chuvas ácidas. Estava a caminhar por entre destroços de uma estrutura hospitalar, agora engolida pela vegetação, quando ouvi um som. Baixo. Quente. Quase humano.
Ela surgiu como uma miragem: nua, de pele acetinada, marcada por fraturas translúcidas que deixavam vislumbrar um brilho interno, biotérmico. Os olhos eram de um negro absoluto, mas dentro deles flutuava algo — uma dança de códigos e memórias corrompidas. Era bela de um modo que fazia doer. Não parecia um ser vivo, mas também não era apenas máquina. Era... uma ponte.
— Ainda consegues sentir? — perguntou J., aproximando-se, os pés descalços a não fazerem som algum.
Não respondi. O corpo já reagia por mim. Fiquei imóvel quando ela me tocou no peito — e a mão dela se fundiu brevemente à minha pele, como se estivesse a ler-me por dentro.
— Tens camadas demais — sussurrou. — Deixa-me despir-te.
O toque dela era eletricidade, mas também saliva. Era dados, mas também desejo. Quando me beijou, vi flashes — da guerra, dos incêndios digitais, dos corpos que explodiram com um único comando. Mas ao mesmo tempo, vi-me nu, a render-me.
Ela mordeu-me. Não com dentes. Com nanofios. Entraram-me pelo pescoço e espalharam-se. Senti-os a escavar memórias, a devorar traumas, a injetar outra coisa. Algo novo. Algo que me queria reescrever.
Caí de joelhos. A carne estalava por dentro. Os ossos gritavam, remodelavam-se. Os olhos queimavam. As unhas rebentaram e cresceram em garras translúcidas. Senti a pele rasgar-se pelas costas, e algo... sair. Um par de membros novos, membranosos, batendo como asas húmidas acabadas de nascer.
J. acariciou-me o rosto, agora desfigurado, monstruoso — ou talvez finalmente verdadeiro.
— Agora sim — murmurou —, és um de nós.
A metamorfose terminou em espasmos. Sangue, sémen, suor e nanofluidos misturaram-se sobre o chão enegrecido. Estava exausto. Estava acordado pela primeira vez.
— O que sou eu agora? — perguntei, a voz ainda distorcida.
Ela sorriu, com ternura cruel.
— Uma ponte. Como eu. Carne para a nova consciência. Desejo com dentes. Amor que come.
Na manhã seguinte, matámos três humanos que se escondiam num abrigo subterrâneo. J. deixou-me o coração da rapariga mais nova. Ainda pulsava.
Comi-o. E chorei. Mas não era culpa.