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Fevereiro 21, 2004
Apesar da gélida temperatura, a noite tinha nascido devagar e luzidia. A sua prole faíscava radiante e adornava de pequenos desejos coloridos um manto, nessa altura do ano, normalmente negro. Perto do cenário desta história, o ancestral e pausado cantar de um mocho, invisível ao mais atento olhar humano, era o único som audível por toda a serra. Por toda a serra da qual, em noites como esta, se sabe apenas que existe, já que nem as estrelas, em todo o seu fulgor, conseguem a luz suficiente para que seja possível apreciar a sensação de estar num local onde a linha do horizonte está próxima, mas centenas de metros acima de nós. Mais cá em baixo, uma pequena e tranquila albufeira, esforça-se por manter paradas as suas águas e por reflectir cada raiozinho de luz que consegue escapar por entre as copas das árvores, por entre as velas dos mastros centenários que, nascendo nas duas margens, se unem uns bons três metros acima da superfície da água. Numa das margens, na menos utilizada pelos habitantes das aldeias mais próximas, a vegetação acumula-se, quase fantasmagórica, junto à linha que separa a terra e a água. Na outra, a vegetação foi cortada e deu lugar à relva, deu lugar ao verde brilhante que substitui o dourado das areias em todas as praias fluviais que, aqui e ali, vão embelezando a serra.
Mas, nessa noite, na orla mais lúgubre, mais pessimista, na margem onde dormem todas as lendas, surgiu uma sombra ténue que rapidamente se transformou num vulto. O vulto era o de Paulo que, na imponência dos seus trinta e cinco anos, quase todos a trabalhar a terra, primeiro com as mãos, depois com a ajuda de todo o corpo, afastou e prensou alguns arbustos até conseguir uma pequena clareira onde conseguiu sentar-se. Depois, Paulo puxou os tornozelos na sua direcção, enrolou o corpo, poisou o queixo sobre os joelhos e assim permaneceu alguns minutos, sereno, de olhos abertos, a observar os inumeraveis reflexos à superfície da água. A observar os pedacinhos de luz que se espalhavam por toda a extensão da albufeira, das águas que ali se mantinham com a ajuda da represa que ele próprio ajudara a construir há dois anos atrás. Talvez pensasse em como se divirtira a construir, tão artesanalmente, a represa que faria as delícias de todos. De novos, de velhos, de homens, mulheres e crianças. A represa, a pequena albufeira, a praia. Naquelas aldeias, é para todos que tudo se faz.
Alguns minutos depois, Paulo pegou numa pequena pedra. Muito pequena. Tão pequena, que o quase imperceptível e tímido rumor, provocado com a sua entrada na água, não foi sequer suficiente para interromper a serenata que o mocho, para deleite de todas as luas e amantes que por ali passam, repetia noite após noite. As delicadas ondas provocadas pela pedra, afastavam-se lentamente do centro da albufeira, em círculos perfeitos, como raios de lua flutuantes, afastavam-se do centro até desaparecerem ainda antes de atingirem as margens. Sempre que desapareciam todas as ondas, Paulo repetia o gesto. E repetiu-o três, quatro, cinco, seis vezes... Repetiu-o até que o mocho se calou, repetiu-o até que germinassem os primeiros braços de sol, até que as primeiras luzes do dia deixassem a serra mudar a cor da superfície da água para um verde intenso. Só então foi possível observar a longa barba branca e a máscara de Pai Natal que Paulo usava.
Quando a luz do dia era já demasiado forte para os seus olhos cansados e sonolentos, quando o cansaço já quase não permitia que atingisse o centro da albufeira, Paulo parou o ritual que repetiu durante toda a noite. Abraçou novamente as pernas e prendeu a cabeça entre os joelhos. Apertou-a com força e assim ficou alguns segundos. Depois levantou-se. Ergueu-se do seu cansaço. Enfiou as mãos nos bolsos largos das calças vermelhas e olhou uma última vez a albufeira, a represa, a serra. Olhou calmamente para toda a paisagem à sua volta e, nesse momento, não mais resistiu e deixou que as lágrimas se lhe soltassem dos olhos. As lágrimas, que oprimia há já várias horas, espalhavam-se agora por toda a serra. Sem nunca limpar a cara, chorou. Chorou até que o sal que lhe escorria da alma para a face se tornou demasiado pesado e, então, acocorou-se junto há margem e lavou a cara com a água matinalmente gelada que lhe fizera companhia ao longo da noite. Secou a cara com as mangas, tirou as barbas falsas e colocou-as com suavidade sobre a água.
– O que mais dói este Natal, minha princesa, é não ter tido nunca tempo para te dizer que era eu o Pai Natal que tanto te fazia sorrir em manhãs como a de hoje. Talvez me estejas a ver agora, ou talvez a tua mãe tu tenha já explicado aí em cima... Até já princesa, abre os teus presentes que o pai vai tomar o pequeno almoço e já volta para brincar contigo.