Ali, no primeiro andar, mora uma mulher...
Janeiro 06, 2021
Ali, no primeiro andar, mora uma mulher amordaçada, uma feiticeira que o tempo se encarregou de transformar em resíduos de sangue e musgo esverdeado. Passa os dias a observar as peras e nêsperas de árvores de jardim que nunca dão fruto. No prédio ao lado, mas no terceiro andar, mora outra mulher igual que nunca vem à janela. No mesmo prédio, na única varanda sem marquise, um vitral de roupas coloridas flutua tranquilamente. São roupas do casal mais jovem do prédio, acho que trabalham os dois e não têm filhos, raramente os vejo, não sei sequer a que horas penduram o tempo que lhes resta no velho estendal. No prédio onde vai morrendo a velha feiticeira, o segundo, o quarto e o quinto andar, não têm roupa estendida e estão para venda. O terceiro andar está alugado a estudantes, raramente são vistos, mas ouvem-se todos os dias, são três e, por culpa deles, já foi necessário desentupir os esgotos do prédio. Ainda bem, porque descobriram o canário da velha feiticeira. No quarto andar do prédio do jovem casal, mora a serpente selvagem do bairro. No arame, roupa preta, lingerie preta e uns chinelos de pano, pretos. Uma pantera noturna com cabelos de seda e corpo de gestos e ritmos fulgurantes. No segundo andar moro eu. No primeiro mora a única família completa dos dois prédios. Gosto de os observar quando brincam os quatro com o labrador, o mesmo que alguém já tentou envenenar. Neste bloco existem mais oito prédios, mas, não conheço ninguém, como tenho garagem raramente me cruzo com quem quer que seja. Moramos todos muito longe de tudo, moramos todos muito longe de todos. Mas temos um jardim, que ninguém usa, com árvores de fruto que nunca dão fruto.