AVC-R - Cap II
Novembro 24, 2020
O vácuo preenche a minha vida e, mesmo com o desinteressado e incondicional apoio da minha família, uma dolorosa, total e escura falta apoderou-se das tarefas mais simples. Até a comida é demasiado salgada. Os dias sucedem-se e nada muda. O tempo é lento e vem armado. O vento fere com gritos. As ruas estão vazias. Não acredito na existência de anjos (ela acreditava), mas acredito na poesia, no amor e em uma forma qualquer de destino que aqui me trouxe. No entanto, nada resta senão o frio e o som de lágrimas a perderem-se com violência no chão. Toda a beleza morre um dia. Lágrimas e lágrimas. Saudade. Ela tinha uma tatuagem: amor omnia vincit. No pé esquerdo. O amor como suporte.
Não tenho dúvidas que me seria mais fácil reagir ao mais prolongado dos males que a esta atroz e pesada ausência. Das poucas coisas que me consola é pensar que esta silente agonia poderá ajudar-me a reconhecer a alegria quando ela chegar. É provável que venha a ser triste na alegria, por isso vou aproveitando para tentar procurar alguma alegria na tristeza.
Ainda faço amor com a Margarida quase todos os dias. Sempre que escrevo um poema ela é cada um dos versos. Quase todos os dias lhe escrevo. Com ela o tempo era tão instável como o que corre nos sonhos e nos meus versos. O sofrimento foi simples: acordei e já não eram as mãos dela que afastavam a luz dos meus olhos (dorme mais um pouco). A manhã foi longa. Escura. Chovia. Recordo com nitidez o estardalhaço que os corpulentos e compactos pingos faziam nos beirais. Naquele dia, tudo se tornou mais cruel: a terra, o mar, os jardins, o céu. A própria vida tornou-se mais cruel. Acordei e já não tinha a corda que me amarrava aos dias a sorrir. Não mais teria os seus olhos a iluminar a escuridão em que eu caminhava. Estavam fechados para sempre. Não mais poderiam encorajar os meus passos apavorados. Soube, naquele momento, que nunca mais veria a Lua deitar-se entre nós. A estender devagar os braços e a envolver com ternura os nossos corpos despidos. Foi como se todas as portas se fechassem e eu ficasse do lado de fora de todas elas.
Ainda procuro, todas as noites, uma rua cálida onde a voz da Margarida seja o meu suão e o meu mapa; a minha fogueira; o fio onde equilibro a minha existência. Agora só solidão. As recordações, mesmo as boas – se é que se podem chamar boas a memórias que não fazem sorrir –, só servem para tornar ainda mais profunda a dor da sua ausência. E dói. Doem muito os rasgões no corpo que ela já não preenche com a voz. Dói muito a carne viva em que ficam os olhos de tanto a procurar.
Antes de partir, a Margarida era, não só, as minhas pernas, braços e mãos, como também, o meu coração e sobreviver sem um é espinhoso. Não tem sido nada fácil esta empreitada: tentar recuperar sem o seu dom na minha vida tem sido uma tarefa que não desejo nem ao mais bárbaro. Podia, no entanto, ser ainda pior. Tenho tido bastante sorte e, modéstia à parte, algum mérito. Por falar em modéstia, há quem me acuse de não a ter. Estão totalmente à vontade, mas deixem-me dizer a essas criaturas: estão a confundir imodéstia com amor-próprio e com não ter vergonha da realidade. E com isto vou apenas conseguir novas acusações.