Compulsão - 2
Maio 29, 2025
suspeito que estes jantares de solidão potenciam noites como a de ontem. mais valia ter ficado sozinho em casa que sentir os sanguinários espinhos da solidão aqui no meio desta gente toda. o silêncio aqui é mais sombrio. tantas palavras gastas inutilmente. aqui o silêncio é o rumor do nada e as palavras são o silêncio.
as mesas têm tampos de mármore branco e veios vermelhos, como se sangrassem. só dão para duas pessoas. as cadeiras têm costas de ferro, muito trabalhadas e são estranhamente confortáveis. quem olha para elas não adivinha o quanto. metade das paredes tem azulejos brancos e azuis. a outra metade, a de cima, é em estuque, está pintada de um amarelo pastel muito claro e espalhadas por esta metade estão datas, agrupadas duas a duas, escritas a preto e cujos dígitos parecem escritos à mão. por baixo de cada duas, está o nome de um génio universal: Einstein; Leonardo da Vinci; Pablo Picasso e outros. provavelmente, serão datas de nascimento e morte. um ambiente, à partida, frio, mas cuja iluminação cuidada torna acolhedor. é a primeira vez que cá venho. provavelmente, a última. o espaço e a comida mereceriam outras visitas, mas há cá gente. por estes dias, apenas consinto a recordação fluvial e o pressentimento da ternura.
estou cá dentro, mas é como se chovesse. é como se o céu tombasse sobre ruas distraídas pela sombra dos sonhos. se, entre duas árvores, devidamente distanciadas, houver, a uni-las, uma cerca de madeira em que as tábuas formem uma espécie de pauta, os pardais pousam e distribuem-se nela como notas musicais, mas ficam em silêncio e, quando cantam, fazem-no sem que o conjunto dos cantos forme uma harmonia. é, mais ou menos, o que acontece aqui.
só a memória do teu rosto suspende a confusão das vozes.