Compulsão - 22
Junho 19, 2025
quando a claridade rompe e as palavras novamente se espantam é que o fascínio me invade. em noites assim dormidas, a poesia nasce-lhe nos dedos e espalha-se no meu corpo como fogo em ceara de trigo. algumas insónias ou vigilantes inquietudes noturnas acontecem porque a silhueta vermelha do seu corpo se deita comigo, como se um violino ecoasse desejo pelo meu corpo.
amo-a. amo
a Maria – o amor é um mistério revelado pelos seus olhos – não é só o desassossego permanente, nem apenas uma silhueta vermelha, é também a voz vibrante no abrir das flores e a força de mil animais no meu corpo. é o riso e o sussurro das manhãs, as mãos que me lavam das sombras: princípio do sol ou luz repentina.
o dia vai ser lento.
curioso como a perceção que temos do tempo a passar muda consoante caminhamos para eventos negativos ou positivos: quanto mais desejamos determinado acontecimento mais ele parece demorar. mais, a proximidade temporal desse evento é inversamente proporcional à perceção que temos do tempo que decorre até à sua ocorrência. veja-se, por exemplo, o Natal: se o marcarmos como objetivo, de janeiro ao fim de novembro o tempo parece voar e em dezembro parece arrastar-se.
um bom truque é sobrecarregarmo-nos com tarefas: quando temos muito que fazer, o tempo parece voar. reconheço, no entanto, que a preguiça, no meu caso, é uma feroz inimiga da aceleração temporal.
combinei com a Maria encontrá-la depois de jantar, mas estas horas até lá vão ser dolorosas. é um pouco arriscado ir com ela a um sítio que não conheço, mesmo assim quero levá-la a uma discoteca que me falaram. ela já costuma vestir-se de preto, mas, para ter a certeza que se sentiria bem e enquadrada, pedi-lhe que o fizesse e, sem revelar praticamente nada (até porque quase nada sei), descrevi-lhe, mais ou menos, o ambiente que encontraríamos.
ao vê-la, fiquei como quem vê o mar, pela primeira vez, já adulto. por baixo de um feminino casaco preto, talvez inspirada na mulher que víramos há uns dias no restaurante italiano, tinha uma transparência preta e também não tinha sutiã. usava uma minissaia rodada e umas meias de liga, ambas pretas. os olhos, assim como as unhas, também estavam pintados de preto.
apesar de estarmos à porta de casa dela e de a iluminação pública impedir qualquer sombra de nos proteger, fiquei excitado, tive vontade de lhe rasgar as meias e fazer amor com ela ali mesmo. perguntou-me:
- Podemos ir beber café a dois sítios diferentes: um é onde costumam estar os meus amigos, tem música e é muito concorrido; o outro é um típico café de bairro, muito sossegado e, a esta hora, quase sem ninguém. Qual preferes?
detesto lugares fechados com muita gente. já ir a uma discoteca… só mesmo pela Maria:
- Se não te importares, prefiro o segundo.
- Claro que não me importo.
antes de entrarmos a Maria fechou o casaco, olhou para mim e sorriu:
- Há que evitar falatórios. Não custa nada. No outro café não era preciso.
- Preferias ter lá ido, não é?
- Não! Eu o que prefiro é estar contigo!
não! eu o que prefiro é estar contigo!
não! eu o que prefiro é estar contigo!
não! eu o que prefiro é estar contigo!
sorrimos os dois.