ESPLANADA DE MEMÓRIA
Março 29, 2023
a luz é atrevida. é como um ladrão ainda adolescente. rouba o vermelho ao toldo para lhe pintar o rosto com as cores do meu desejo. uma imagem imóvel (também o tempo parece parado) destaca as palavras que sangram e permitem ou forçam a navegação de navios transparentes, carregados de recordações. na memória, a combater o silêncio a que me obrigo e a alimentar algumas noites brancas, os seus olhos e a forma como ainda ousam caminhar-me pelo peito. e da imobilidade em silêncio nasce de novo a vontade de me juntar ao sangue.
por trás, passa um rio. um rio negro. um espelho cintilante dos olhos dela. nas suas margens, já dentro de água, à sombra de árvores que cresceram longamente e em sigilo, crianças brincam, descalças, de calções ou calças arregaçadas até aos joelhos, com muitas gargalhadas e gritinhos. mesmo em silêncio, a voz dela confunde-se com a água e com as crianças.
o sol está muito quente. e muito alto. empresta brilho ao céu inteiro. e ao cabelo dela. como se o acariciasse, lança os braços sobre ele e aloira o que é, por norma, escuro. perto dela, o calor do sol sabe a leite com mel. o sorriso, que a veste, também. talvez o sabor do sol venha da profusão de lírios dentro da minha boca sempre que a vejo.
uma vez beijámo-nos e ela ensinou-me a dar nós de gravata. já foi há muitos anos, mas continua a ser a forma mais original que alguém usou para dizer que me ama. é preciso gostar muito de alguém para lhe ensinar a fazer um nó na gravata. eu acho.
ela vem de terras frias e interiores, ainda se nota, tem nas palavras a mesma precisão com que a geada se deposita nas sombras: a mesma inteligência da neve, que escolhe sempre dias frios. não há nela muito mar, mas há muita terra molhada (ai o cheiro) e algumas montanhas – não muito altas, mas totalmente floridas (ai o cheiro).
o conjunto do corpo com o que recordo dele ainda é um incêndio. um dia trago-o para dentro de um poema.