ESPLANADA DE MEMÓRIA - 9
Junho 02, 2023
as mãos desciam à fonte e ouviam, em êxtase, o marulhar profundo da terra onde estavam. o som, aquático, era, nos meus dedos, o macio e transparente aconchego do prazer. o corpo dela arqueava e chicoteava. serpenteava, ávido, sobre o meu. dançava ao ritmo dos gemidos que o vento produzia ao atravessar as ranhuras da, ainda distante, porta mal fechada. pensando bem, talvez não fosse o vento que gemia. certas, eram a imobilidade e a ternura no fim da batalha. certo, era o sol a nascer uns degraus acima de nós, a caminhar lento na nossa direção e a eliminar-nos gradualmente as sombras. eram as palavras que lhe apareciam no corpo seminu e eram os poemas que com elas os meus lábios compunham sobre os despojos.
no mármore, cresciam fileiras de pequenas flores amarelas. libertavam, abundante e também amarelo, pólen que se acumulava junto a ela e, como se uma caneta fluorescente lhe realçasse as linhas mais sensuais, destacava-lhe a, já normalmente, cintilante e feérica silhueta.
pensava que éramos discretos, mas era impossível esconder de quem nos conhecia a cumplicidade dos olhares e uma vez um amigo perguntou-me se eu tinha algo mais que amizade com ela. claro que neguei, mas desconfio que a respiração descompassada e o sorriso, inevitável e ligeiramente malicioso, ter-me-ão denunciado. não sei porque o fazíamos, mas o secretismo tornava tudo ainda mais excitante. embora eu hoje ache que toda a gente sabia – incluindo amigos e adultos, incluindo os nossos pais -, na altura, o imaginado secretismo de um beijo era como a nudez de dois amantes.