fevereiro 2004
Fevereiro 01, 2004
apaixonei-me,
(se ficar assim mais de uma semana,
prometo tentar escrever um poema de amor),
apaixonei-me.
cá estou eu, por aqui, a fingir que sou eu que por aqui estou
(pior que isto, é todos fingirem que não percebem que cá não estou).
mentiras. eu não existo.
mesmo este aparentemente é falso.
estas palavras não existem assim escritas.
por momentos fartei-me de ser apenas eu,
mas a verdade é nada de novo ter a dizer
e não resistir ao egocentrismo de me saberem.
arrependi-me, voltem aos vossos,
quero estar só comigo. inutilmente,
ser apenas eu inutilmente comigo apenas.
não sei, não quero, escrever para outros.
quero estar fora de moda e fora de vista,
escondido de ninguém entre os versos.
irrita-me o falso esplendor contínuo,
onde a treva e a lama não penetram nunca.
a beleza infinita das palavras é uma mentira,
mar também se escreve com f de fome
e flor também se escreve com m de morte.
J a n e i r o
escrevo frio
enquanto penso
na masturbação
dos céus carregados
de cinzas.
penso frio
enquanto escrevo
mudança
na condensação
das cinzas.
o embrião do ano
é também o útero
onde esperma renovado
procura fecundar
a esperança.
por trás de uma densa coluna de fumo branco
há uma tempestade de ossos vermelhos
que me cresce por dentro do sangue
nessa virgem floresta de artérias estranguladas pelo medo da loucura
experimentei arrancar raízes e queimar as últimas folhas
mas a memória permanece muito para além do corpo
não tenho medo de estar só
tenho medo de não estar contigo
é quando morre o dia
que mais me fere
a inexistência de uma mão
que me embale
o desejo.
lá fora, tela de Miró,
dentro da tempestade,
néons de dez mil cores
pontilham o manto
que me nego a receber.
espectral,
aproxima-se o desassossego
e vergam-se as árvores
à passagem medonha
do seu assobio.
choro-me
e funde-se-me o corpo
no mesmo vidro
onde chuvas
desenham memórias.
para que o receba
o calor que me resta,
abro as janelas,
inundo-
-me
há por ali um peixe
ignorante da sua mortalidade
num sonho breve
entre dois cigarros fumados pelo vento
imito-o finjindo desconhecer a morte
no inverno as pessoas
passeiam pela praia aos pares
o sol de inverno atenua todas as sombras e o marulhar contínuo,
tão branco como a falta de passos nas areias,
realça os detalhes dos bocados de gente que ficaram.
destaca-se um atrelado de brincar, muito amarelo,
imponente na sua pequenez perante a imensidão da praia deserta,
mas há também isqueiros, pilhas e copos.
todos eles já gastos e vazios de todas as vidas.
talvez se o tempo fosse apenas um mudo silêncio
eu não pudesse hoje festejar-nos com este poema
mas o nosso embrião foi uma sombra subterrânea
que se libertou pelo grito para ser o sonho teimoso
e a luz barulhenta que não deixa dormir o tempo
talvez se o fogo fosse apenas o de um fósforo curto
eu não estivesse hoje a festejar-nos com este poema
mas a semente deste navio foi um fulgor clandestino
que à hora do ocaso se revelou ser a floresta infinita
onde os incêndios do espírito se tornam incontroláveis
eu sei há ainda dez mil versos de amor por escrever
e temos ainda dez mil estrelas secretas por conquistar
mas hoje somos já como dois rios unidos pela serra
como duas pétalas da mesma margarida selvagem
que muitas vezes se perdem mas sempre se acham
somos já como dois cálices que se bebem mutuamente
como dois violinos da mesma orquestra de sentires
que muitas vezes se calam mas sempre regressam
eu sei há ainda ventos que sopram demasiado fortes
e temos ainda um exército de sombras por derrotar
mas neste primeiro ciclo que o sol sobre nós completa
aproveito o murmúrio veloz da celebração e segredo-te
sou tão totalmente teu como ao mar as ondas pertencem
sou um prolongamento em chamas da tua pele de fogo
relâmpago de pérolas que se desprende longamente da terra
para se espalhar na nudez de veludo onde te amo
voltei ao canto de quarto onde tudo começou
parece-me mais pequeno mas as memórias estão todas aqui
socorro-me de um portátil antigo para dar conta de algumas delas
a enorme biblioteca de enciclopédias temáticas onde aprendi a ler
permanece bem lá no topo poeirenta sábia e fria
as figuras do século xx continuam imóveis
o meu pai olhos tristes como nunca
e todo um amontoado de recordações universitárias
(muitas estão como novas por não terem sido nunca usadas)
recordo como minhas cada sombra na madeira
cada letra de granito e cada reflexo sobre a mesa
até os cliques da televisão desligada
são como uma velha música de novo cantada
vou levar apenas o meu velho copo de agrafos
segundo uma notícia de última hora,
publicada no diário de todas as almas,
a poesia está proíbida de ser escrita
até a fome morrer assassinada pela letra m.
fontes próximas do governo das palavras
disseram ao mesmo diário:
"não podemos continuar a assistir à invenção do amor
por palavras sonhadoras e pouco fiéis à palavra real
deixando palavras como muro e sapatos morrerem de fome"
foram já convocadas manifestações
por vários dicionários
mas a mesma fonte avisa:
"todas as tentativas de violentar o governo serão cruelmente reprimidas
por forças bem treinadas de palavras começadas por erre"
a nós cabe-nos apenas informar
mas dada a gravidade da decisão
não podemos deixar de expressar
a nossa total confiança na força de todos os sonhos
para que tudo seja resolvido sem que o sangue
seja usado na sua forma mais literal.