maio 2004
Maio 01, 2004
lembras-te da lua...
lembras-te da lua ser um lago de braços abertos à ternura
e o sol um banco pintado pela loucura dos dias por acabar?
lembras-te dos candeeiros de rua serem espiões curiosos
e do silêncio ser tão breve como a sombra de uma águia?
lembras-te de um casaco ser a fronteira entre nós e o mundo
e do lusco-fusco ser só a antecipação de uma visão de nudez?
lembras-te de como era fazer encolher o tempo com um beijo
e de como alargávamos o espaço com um simples suspiro?
lembras-te de como se perdiam os pássaros nas tuas mãos
e de como te perdias nas asas dos pássaros perdidos nas tuas mãos?
lembras-te de um vidro ser a tremenda distância entre querer e poder
e de as árvores serem como testemunhas fotográficas de um sonho?
lembras-te?
agora somos a lua e o lago e a ternura do sol e dos dias,
somos uma só águia e somos silêncio, luz e loucura.
agora somos o mundo e somos a nudez e o lusco-fusco,
somos o tempo e o beijo e o espaço e os pássaros,
somos as asas e somos as mãos e as árvores e o sonho,
somos o vidro e a fotografia de não sermos ainda quase nada,
somos, enfim, a alvorada de uma primavera tão interminável.
manhã
há um mistério de espelhos envenenados
na voz dos ramos nus com que me abraças
ida e volta
de cada lado de cada lado de cada lado
há um sol há um sol de cada lado há um sol
da subida da subida há um sol de cada lado da subida
no início no início da subida há um sol de cada lado no início
no início no início da descida há sombras por todo lado no início
da descida da descida há sombras por todo lado da descida
há sombras há sombras por todo lado há sombras
por todo o lado por todo lado por todo o lado
ainda está sol lá fora
dentro destas tardes iguais
e deste vento enjoativo
e deste vento oleoso
bolachas de fibra e omega-3
escondem o orgasmo do desespero
enquanto me passeio entre uma janela
e a janela da pastelaria
onde as putas se preparam
para umas horas na porta do lado
falta pouco
falta pouco falta pouco
falta pouco
e se...
"... um dia conseguissemos escrever realmente o que nos vai na cabeça?"
A pergunta é do Pedro do microcosmos. Eu por vezes tento fazê-lo. É um óptimo exercício se estivermos bem dispostos. Neste caso, que já tem uns meses, guardei o resultado para não me esquecer de fazer este exercício apenas quando estou mesmo bem disposto :) cá vai:
«decidir a inexistência suicidar dois de mim chorar porque choro e porque quero chorar porque sim e porque não porque não? quero lá saber se sou o que não sou ou se não sou o que não compreendo ser posso escrever poesia que nem eu entenda se me apetecer sangrar o pescoço para cima da folha em branco e escrever com os dedos a poesia que quiser como estas palavras que não formam um poema choro apenas e deixo os dedos escreverem o que querem não há alma nenhuma nisto eloquente não sou nem quero ser sou apenas eu a escrever lágrimas revolta desespero gargalhadas loucura amor amor amor amor ahahahaHAHAHAHAH amor!! pois claro sempre o amor! eu acredito no amor eu amo tu amas ele ama e se todos amamos o amor existe eu amo mas agora não me apetece senão chorar o amor e o medo e o mar a engolir o jardim constantino mentira ou poesia picasso só conheço esse pintor até tenho uma tshirt com o guernica nunca escrevi tantas lágrimas como se escrevesse um poema a seguir diminuo a letra e se alguém louco demente quiser publicar isto que o faça com letras do tamanho da vontade de sorrir que tenho neste momento será que alguem vai ler isto até aqui? se calhar a verdadeira essência do poema está lá mais à frente... pensam... não está, se chegaram aqui desistam porque não está este não poema é isto mesmo eu a chorar palavras para não me afogar nas lágrimas não está este não poema é isto mesmo eu a chorar palavras para não me afogar nas lágrimas vou dormir se esperavam mais deste poema é porque também está na vossa hora de dormir. um resto de boa noite.»
Mas penso que o "realmente" a que se refere o Pedro é, na realidade , impossível de conseguir, há demasiadas cores sem nome e demasiadas formas não desenháveis. Mas é sempre um belo exercício tentar.
segredos
olho para cima, vejo apenas os músculos de um mar que já foi gente.
gostava de poder falar-lhe ao ouvido,
de lhe contar as aventuras de um pássaro que aprendeu a voar sozinho,
gostava de o abraçar e sintetizar-lhe na pele a fisionomia de uma recordação,
mas o sangue negro que o envolve escapa-se-me entre os braços e o medo,
o assobio de um ramo vestido de sombras
impede que a chama dos ventos cá dentro lhe segredem: calor.
não gosto de começar um verso com a palavra não, mas
não há como fugir ao som desafinado de um não
se entoado pelo vazio no vazio da memória. serás capaz de o entender?
a fuga das marés para a noite arrasta com ela todos os bichos,
mas o regresso das andorinhas ao alvoroço madrugador,
acorda de novo o tridente que tenho cravado nas pernas,
amarra-me ao pesadelo do silêncio e dos contos por acabar.