P.
Dezembro 08, 2017
gravado em ameias e muros, em pinheiros e areias, o grito mais claro: o sol. como banda sonora da insónia: dedos cruzados na memória e fotografias antigas. a P. estava ainda mais bonita. todos os versos alguma vez escritos significam que estava ainda mais bonita. os amplos relâmpagos de brilho no seu sorriso, nesse dia, abriram fogueiras maiores.
estava ainda mais bonita. cada onda no mar, cada duna no deserto. cada fonte de água fresca nos seus lábios. cada flor que nasce na terra. o caule. as pétalas. é bonita.
comecei a escrever com a intenção de lhe dizer que é bonita o mesmo número de vezes que, num dia, recordo o quanto é bonita. depois achei que ficaria cansativo e decidi dizer-lhe apenas: quero-te! como fazem os loucos: falar apenas com o sangue.
é bonita.
quando me dava a mão, quando éramos tronco na mesma árvore, sentia terramotos no corpo, mas isso não é só por ser bonita. isso só causaria arrepios. é por ser a mulher mais bonita do mundo e estar a tocar-me.
lembro-me que as ruas de Leiria pareciam pequenas e não tinham capacidade para suster a nossa alegria. lembro-me das suas mãos e da forma solar como agarravam as minhas. lembro-me da sua voz sorridente. que a frescura da sua pele era maior que a das chuvas florestais e que as aves que repousavam na sombra do seu corpo de luz penetravam nos meus olhos como se o infinito parasse. as ondas que lhe nasciam nos olhos, que lhe cresciam no peito, que se lhe enrolavam na cintura e se espraiavam nos seus pés, traziam na crista fragmentos do meu desejo e lançavam-nos para as margens do seu corpo dando nova vida às minhas ânsias.
o dia sorria e parecia ter um acordo com a nossa descontrolada alegria. também a sorrir, fomos visitar o castelo e, lá chegados, tirei do bolso o pequeno canivete que anda sempre comigo e, a letras fundas, gravei na primeira árvore que nos olhou:
tocar brevemente na P.
é como se beijasse longamente
a única ave do planeta
L. & P.
a P. leu, sorriu, agarrou-me pela mão e, puxando-me, correu até à muralha, até ao local onde uma fresta permitia-nos ver a cidade e por onde o Sol, quase deitado, estendia os braços, entrava, misturava-se com o pó e desenhava traços de luz paralelos ao chão.
um desejo, que há muito vinha crescendo, tornou-se demasiado grande para ser segurado dentro de nós. a P. segurou-me na cabeça, puxou-me para muito perto dela e, com tudo parado ao nosso redor, com uns olhos que tinham o mundo todo, disse-me, em lento silêncio, que queria que eu a beijasse.
quando os meus lábios tocaram os dela, um arrepio, não sei se de frio ou calor, percorreu-me o sangue e quase me paralisou.
o dia não foi menos que perfeito. aliás, teve um defeito: terminou. embora, nunca tenha terminado. a eternidade existe e é aquele dia.
Leiria ligou-nos de uma forma que eu não sabia possível. tudo era azul. no entanto, poeira muito negra meteu-se entre nós e separou-nos. poeira para a qual só agora, passados mais de vinte anos, consegui uma possível explicação: medo. tive medo. não estava preparado e fugi.
durante aqueles meses, a P. proporcionou-me alguns dos mais alegres momentos de que me recordo. e alguns dos mais tristes também. nem daqui a um milhão de anos, a memória de a ver chorar, pela primeira vez, será mais leve. choveu sem chover. relâmpagos e trovões mudos. frio. tudo se fez silêncio e demora. só o ritmado som das lágrimas, a embaterem-me com violência no rosto, não era lento. depois, mais lágrimas e o ar a rarear ao meu redor. crianças ensanguentadas, deitadas na minha garganta, dentro da minha boca.
em oposição, gravei também um momento de meses. a boca. a música. a franja. as tendas demasiado pequenas. a voz. a noite. até uma beata de cigarro, acesa, a rolar ao sabor do vento nas solitárias e húmidas areias noturnas.
uma beata ao sabor do vento. como uma rosa. como um adeus. a P. os lábios dela e a sensualidade com que, por vezes, os usava nos meus. como naquele alpendre. com o frio a fazer-se calor e a pressa a transformar-se na mais perfeita lentidão. como se o sol ardesse lento na sua imagem ou rios lhe nadassem na pele despida. abraçámo-nos com tanta força. como se quiséssemos apertar entre nós aquele instante. como se o quiséssemos para sempre. todo eu queria ser a seiva que lhe arde nas veias; um animal sem sombra a comer calor no seu ventre.
todo o seu corpo, os ombros, toda ela é a geometria dos mestres. toda ela é milimétrica teia de desejo.
(continua – um dia)