P. - II
Janeiro 01, 2018
depois de Leiria, o rosto da P. alterou-se ou mudou a minha forma de o olhar: ao seu sorriso adequava agora um rio como se lhe tivesse corrido dez mil anos pelo rosto – pelo sereno e delicado leito das estrelas.
morávamos longe e mil cartas se seguiram. escrevia-lhe não só por profunda necessidade, mas também porque não podia gemer em conjunto com o coração que ela tem na boca, porque era a única forma de enterrar palavras nela, por ser a única forma de sentir o seu sangue no meu.
apesar de agora haver o infinito todo entre nós e aquele dia, é ela que com o seu estrondoso silêncio faz da água deserto e dos meus olhos primavera. mesmo invisível, a P. continuou sempre a existir em mim. no meu sangue. nos meus lábios. na minha cabeça. no corpo. na alma. é silêncio o rumor do mar. furiosa agitação da carne, onde grito o seu nome. na esperança que me ouça e regresse para me resgatar da sombra.
a P. e o que sinto por ela não deixam espaço aos demónios e aos medos. nos meus sonhos a nudez dos fogos é o seu corpo e a silhueta de flores que nasce no seu ventre.
cada segundo que agora temos entre nós é sangue, é uma lágrima que se desprende do corpo e cai num mar de sombras que já transborda. na sua atual face de rainha brilham dez mil estrelas e, também nela, o fulgor do sorriso: árvore e rio, os olhos: desassossego e a boca solar: calorosa voz – calorosa luz. com a P. eu sabia como ser água ou fogo, como ser a lentidão dos amantes ou a brevidade do grito na leve resistência do sangue. sabia como ser gazela flutuante ou a intimidade do linho no corpo de uma serpente. magoa-me a memória das escaras que, no meu peito, abria com os lábios azuis. a morte? foi carne e espírito a voar-me rebelde entre os dedos: inesquecível e perplexa primavera na pele, pássaro caído dum céu cujo desenho não entendi. é assim que tudo termina? num fundo rumor? com gritos que atravessam o infinito? gritos vindos do passado presente?