A TERAPEUTA MALDITA
Maio 05, 2025
A fria crueldade da M. alimenta-se do seu desempenho. A tonalidade dos seus olhos vai mudando com a quantidade e qualidade dos exercícios que administra aos pacientes que se deixam encantar pela sua simpatia inicial, extrema beleza e apurada sensualidade. Alta, de cabelo comprido e claro. Por vezes, penteado com um coque. Com pedaços de franja a caírem-lhe, com falsa aleatoriedade, pelo rosto. Olhos profundos, com sabor a caviar e sorriso fácil. Qualidades que juntava para tornar relativamente simples angariar pacientes. Ou vítimas, conforme lhes queiramos chamar.
O mais impressionante nela - bem, não o mais, mas impressiona - é ela conseguir, através do medo provocado e de uma infinita capacidade de persuasão, que nenhuma vítima se queixe. O F. é uma das vítimas dela e caiu no erro de, logo na primeira sessão, lhe dizer saber ser estranho, mas adorava ver uma mulher em fato de treino.
F. não sabia ao certo quando deixou de ser paciente e passou a ser coisa dela. Talvez tenha sido logo nas primeiras sessões, num exercício de respiração, quando ela, com os dedos a pressionar-lhe o abdómen, disse em voz baixa: “Aqui, controla-se tudo.” Ou talvez tenha sido antes, quando ela, de fato de treino cinzento e cabelo apanhado, lhe sorriu como quem sabe que vai partir alguma coisa só para ver como se refaz.
F. pensava nela fora das sessões. Pensava nas palavras, nos gestos e, sobretudo, nos silêncios dela. Havia algo nos silêncios — longos, calculados, quase ensaiados — que o prendia mais do que qualquer toque.
Naquela sessão, ela trouxe uma corda. De treino funcional, disse. “Para o equilíbrio.” Mandou-o ajoelhar-se sobre uma almofada fina e segurar na corda com os braços esticados à frente. O exercício, segundo ela, era para fortalecer a mente através da tensão. “Quando os músculos tremem, a verdade aparece.”
F. tentou protestar, mas os olhos dela, agora de um tom âmbar escuro, como se o caviar tivesse apodrecido um pouco, cortaram qualquer tentativa de protesto. F. suava. Não só do esforço. Havia medo, sim, mas também uma estranha vontade de obedecer.
Ela aproximou-se e sussurrou:
— A dor é só uma palavra. Quem a controla, molda o mundo à sua imagem.
Ela não é inimiga, F. — é ferramenta.
Os fracos fogem dela. Os medíocres temem-na.
Mas os que aspiram ao domínio... esses aprendem a vesti-la como uma segunda pele. E ao fim de algum tempo, já não distinguem onde termina a dor e começa o poder.
E apertou um pouco a corda em torno dos pulsos dele. Não para ferir, mas só o suficiente para que ele soubesse que ela podia fazê-lo.
Foi nesse momento que ele compreendeu: M. não queria curar ninguém. Queria moldar. Desfazer e refazer, como se fosse artista do trauma. E ele, pedaço de barro ainda quente.
Na saída, como sempre, ela ofereceu-lhe um chá de ervas que nunca nomeava. O sabor era doce no início, mas deixava um amargo que permanecia na língua, assim como a presença dela ficava na mente.
Na semana seguinte, M. estava diferente. O mesmo fato de treino, o mesmo coque frouxo, mas os olhos… os olhos estavam mais escuros. Não castanhos. Negros. Como se a luz recusasse entrar neles.
F. hesitou à porta. Ela abriu antes que ele batesse.
— Já esperava por ti — disse, como se tivesse escutado os passos dele desde o quarteirão anterior.
A sala estava mais fria. Ele não sabia se era o ar condicionado ou outra coisa. A música ambiente — sempre instrumental e calma — agora parecia ter uma batida desafiante, como se algo por trás da melodia tentasse emergir.
Dessa vez, não houve alongamentos, nem respiração guiada. M. mandou-o sentar-se de costas para ela, no chão. Disse-lhe para fechar os olhos e repetir uma frase que ela sussurraria.
— Mas não penses no significado. — Advertiu. — Limita-te a senti-la.
A frase parecia simples, mas conforme F. a repetia, o mundo começou a inclinar-se. Literalmente. A sala girava em silêncio, como se o tempo escorresse pelos cantos. Então, no escuro dos olhos fechados, ele viu. Não com os olhos, mas com algo atrás da nuca. Uma presença.
Era ela. Dentro dele. Percorrendo pensamentos que ele jamais dissera em voz alta. Lembranças que nem ele sabia estarem guardadas. M. andava pelos corredores da mente dele como quem já morava ali há anos.
Quando F. abriu os olhos, M. estava agachada à sua frente, olhos de novo castanhos, sorriso de domingo.
— Viste alguma coisa? — perguntou.
Ele tentou falar, mas a voz saía trêmula. Sentia-se violado. Mas ao mesmo tempo, mais leve. Como se algo tivesse sido arrancado.
— Senti… senti-te em mim. — disse, quase num sussurro.
M. encostou um dedo aos lábios dele.
— Eu sou como o vento. Invisível. Mas arrasto tudo o que não está preso.
Na sessão seguinte, F. chegou sem saber por que estava ali. Não tinha marcado, não tinha sido chamado. Apenas acordou com a certeza de que precisava ir. Os pés moveram-se sozinhos, como se tivessem sido puxados por um fio invisível.
M. esperava-o, sentada no chão, de olhos fechados, com o corpo envolto por um manto preto e fino como fumo. A sala estava escura, iluminada apenas por velas que queimavam com chamas azuladas. O ar estava denso, húmido e cheirava a algo que ele não conhecia — um aroma terroso, adocicado e levemente metálico.
Ela não falou. Apenas estendeu a mão e apontou o chão em frente. F. ajoelhou-se, como se a ordem estivesse no ar, pairando entre os dois.
— Hoje não haverá exercícios — disse, num tom que era ao mesmo tempo sussurro e trovão. — Hoje, abriremos as últimas portas.
Ela tocou-lhe o peito com a palma da mão e F. arqueou o corpo como se tivesse levado um choque. Sentiu-se despido por dentro, como se os ossos se tornassem vidro e a carne, névoa.
— Estás preparado para deixar de ser humano? — perguntou ela, os olhos a brilhar, agora com um fulgor prateado.
F. não respondeu. Já não sabia se podia.
M. ergueu-se. A pele dela parecia pulsar sob a luz das velas, como se respirasse por cada poro. O manto escorregou lentamente por seus ombros, revelando um corpo que parecia esculpido em desejo. Não era um corpo qualquer — era algo primitivo. Cada curva dela continha a promessa do êxtase e o risco da perdição.
Ela aproximou-se, arrastando os dedos pelo ar — e o ar reagia, ondulava. Quando a mão dela tocou a nuca de F., ele sentiu que algo se desprendia de si. Como se uma camada de pele ou mesmo de alma fosse arrancada com uma suavidade cruel.
— O prazer é uma chave — sussurrou ela ao seu ouvido. — Mas poucos têm coragem de girá-la até o fim.
E então, beijou-o. Mas não como se beija um amante. Beijou-o como se tomasse posse. Como se arrancasse dele cada réstia de resistência. E F. sentiu-se dissolver — em calor, em puro fogo.
As velas apagaram-se todas de uma só vez.
Quando a escuridão tomou posse da sala, F. já não era só ele.
Era ele e ela.
Era o reflexo que M. moldara.
Era desejo e medo entrelaçados.
E no silêncio que se seguiu, ouviu, dentro da própria mente, a voz dela:
— Agora somos um. E não há volta.
Mesmo com as velas apagadas, F. não estava na escuridão.
Os olhos fechados não o impediram de ver.
Via com a pele. Com o sangue. Com algo que M. havia despertado dentro dele — uma nova forma de perceção que captava calor, cheiros e intenções.
Sentia a presença dela à sua frente: quente, infinita e inevitável.
Seguiu-se o toque — primeiro leve, como uma brisa a passar pelo rosto e depois mais firme, quando as mãos dela seguraram o rosto dele e o guiaram para cima, obrigando-o a encará-la.
Lá estava M.
O manto negro caíra por completo.
O tronco nu dela emergia na penumbra com um brilho suave, como se a pele estivesse banhada em prata líquida. Não era apenas belo — era hipnótico. Cada linha, cada curva, parecia moldada não por carne, mas por intenções.
Seios firmes, de contornos delicados, mas poderosos como promessas. Os mamilos eriçados como se respondessem à presença dele, desafiando-o, convidando-o, mas impondo veneração.
A pele de M. não tinha apenas textura. Tinha memória. Quando F. passou os dedos por ela — hesitante, como quem toca um altar profanado — sentiu ondas de calor que corriam dos seus dedos até ao ventre.
Ela suspirou, baixa e lentamente e foi como se todo o ar da sala tivesse passado pelos pulmões dele.
— Cada parte de mim é um feitiço — sussurrou, levando a mão dele até entre os seios. — E agora que me tocaste, já estás marcado.
F. inclinou-se, sem saber se era desejo ou submissão. Os lábios tocaram a pele de M. e um sabor estranho, adocicado e metálico, invadiu-lhe a boca. Como o chá que ela servia. Agora mais forte. Mais cru. Quase ancestral.
Ela gemeu — ou talvez tenha sido ele.
O som misturou-se ao ar, às velas apagadas, à batida distante daquela música distorcida que continuava a pulsar nalgum lugar atrás das paredes.
Ela empurrou-o suavemente para trás, forçando-o a deitar-se e montou sobre ele. O corpo dela era peso e leveza, domínio e promessa, céu e abismo.
— Não me toques como a uma mulher — disse, com voz rouca. — Toca-me como a um segredo.
Ele obedeceu. Com a devoção de um religioso e o tremor de quem sabe que será consumido.
O corpo de M. sobre o dele era mais do que carne — era um véu entre mundos. O calor que emanava da sua pele parecia vir de dentro de uma fornalha viva, pulsante e vigorosa. O suor que escorria entre os seios dela brilhava com reflexos que não vinham de luz alguma que F. conhecesse. Prateado. Fluido. Quase etéreo.
Ela inclinou-se para ele, deixando que os seios roçassem levemente o peito de F. — deixando-o em chamas. A pele ali parecia conter pulsações próprias, como se pequenos corações habitassem sob aqueles montes suaves e dominadores. Cada toque provocava uma corrente elétrica que dançava sob sua pele, descendo até regiões que antes apenas respondiam ao toque físico — e que agora reagiam ao pensamento dela.
Porque sim, ela estava dentro dele.
Dentro da mente, dentro do corpo, dentro de tudo.
Os mamilos dela, duros e escuros, tinham um magnetismo próprio. F. já não os via como parte de um corpo, mas como focos de energia que o chamavam, como olhos que observavam. E quando ele os tocou com a língua — lentamente, com reverência animal — sentiu algo abrir-se dentro dele. Uma memória esquecida. Um quarto trancado. Uma dor que ele jamais contara a ninguém.
Ela viu tudo, através daquele gesto. Ele soube. Sentiu.
Ela sorriu.
— Os meus seios não alimentam — consomem — disse, em voz baixa, curvando-se ainda mais, até que ele ficasse inteiro sob ela.
F. lambeu, chupou e mordeu-os levemente. Em cada gesto sentia-se mais longe de si. Cada carícia era um pacto. Cada suspiro dela, uma corda invisível que o prendia mais fundo. E ele queria. Queria ser preso. Queria ser invadido. Queria ser dela.
O tempo dilatou-se. A sala já não existia — só aquele templo de carne e espírito, onde M. era a sacerdotisa e o ritual era prazer e perda.
A pele dela mudava com o ritmo da excitação. Manchas douradas brotavam sob a superfície, como constelações antigas. F. via estrelas nos braços dela, nos flancos, nas costas. Entre os seios, um símbolo brilhou por um instante: um olho fechado. Quando ele tentou tocar-lhe, ela segurou-lhe a mão e disse-lhe com súbita gravidade:
— Ainda não.
E então, selou-lhe os lábios com os dela — e nesse beijo, F. sentiu que estava a deixar algo para trás. Um nome. Uma história. Um limite.
Quando o beijo terminou, ela envolveu-o com os braços, os seios colados firmemente ao peito dele, e sussurrou:
— Agora, já não és só homem.
Ela respirou fundo e ele sentiu algo mudar em seu próprio corpo. Como se músculos novos ou desejos novos, abrissem caminhos onde antes havia apenas medo.
Ela guiava-o — não mais com palavras, mas com vontade pura.
E ele acompanhava-a — nu, entregue, transformado.
Os corpos já não se moviam no chão — dançavam em suspensão.
A gravidade ali já não era lei. Nada valia. Só ela. E ele nela.
F. estava imerso. Já não tocava na M. — era tocado por forças que usavam o corpo dela como instrumento. Cada seio roçando no seu peito era uma onda que despedaçava o seu controle. Cada movimento do quadril dela sobre o seu era uma invocação sagrada. Uma oferenda viva ao que os olhos humanos jamais suportariam ver.
E os olhos de M. já não eram olhos.
Tornaram-se fendas líquidas de luz pura, oscilando entre o âmbar profundo e o dourado impossível. E os seios — agora totalmente descobertos e elevados pela respiração intensa — pareciam irradiar energia. Não apenas beleza, mas poder. Poder cru. Primitivo. Cósmico.
— Tu és o meu altar —disse ela, com a voz entrecortada pelo prazer crescente. — E esta é a oferenda.
Ela montava-o com ritmo crescente, cada movimento uma batida na pele do mundo. E a cada investida, F. sentia-se arder. Literalmente. O seu corpo tremia como se febril, mas era uma febre prazerosa, divina, quase insuportável de tão benigna. Sentia-se prestes a desfazer-se em luz.
M. curvou-se sobre ele, os seios colados ao rosto dele, abafando os seus gemidos. Ele sugava, mordia, implorava sem palavras por mais. E os mamilos dela pulsavam na sua boca como corações vivos, como se contivessem o ritmo da criação e da destruição num só ponto.
Então ela gritou.
Mas não foi um som humano.
Foi um som que racharia espelhos, que acordaria mortos, que estilhaçaria o tempo. Um som de uma língua esquecida, ancestral, carregada de poder e orgasmo.
E ele tremeu com ela. Num jorro de luz e sombra.
O corpo arqueou-se. Os olhos reviraram. E, por um instante, não havia pele, nem ossos, nem nome. Só energia bruta a explodir em direção ao vazio — e preenchendo-o.
Foi um clímax que atravessou séculos. Um momento tão violento e pleno que as paredes tremeram. As velas apagadas reacenderam-se por si só, em chamas azuis e silenciosas. Um espelho rachou. Um relógio parou.
Quando os corpos caíram no chão novamente, exaustos, colados pelo suor e pela essência partilhada, F. não conseguia mexer-se. Nem queria.
M. deitou-se ao lado dele, com os seios ainda a arfar, a brilhar como se tivessem sido ungidos pelos deuses. Tocou-lhe os lábios com dois dedos e disse, com um sorriso sereno:
— Agora sabes o que é ser tocado por uma divindade.
E o beijo que selou depois foi doce, mas cheio de aviso. Porque o êxtase tinha um preço. E ele ainda não sabia o quanto pagaria.
M. deixou escapar um último suspiro — longo, quase triste. O corpo dela tremia, não de fraqueza, mas como se as camadas do mundo tivessem sido remexidas demais. O brilho dourado da sua pele começou a apagar-se lentamente, substituído por uma palidez estranha, marcada por veios azulados que pareciam subir à superfície como raízes à procura de ar.
F. tentou falar, mas não havia mais palavras. Só respiração e um espanto que lhe colava o corpo ao chão.
E então, os olhos de M. apagaram-se.
Não a expressão — os olhos mesmo. A luz dentro deles recuou como chama extinta, revelando, por baixo, algo que não era suposto ser visto: a pele a enrugar-se, os contornos a cederem ao tempo e uma velhice acumulada em séculos a fazer-se visível de uma só vez.
A energia gasta com o orgasmo foi tanta que M. não conseguiu manter o feitiço que escondia as rugas dos seus 800 anos.
— Não olhes para mim! — disse M., virando o rosto, com uma raiva que cheirava a humilhação.
F. desviou os olhos. Não por medo, mas por respeito.
— Serás sempre a terapeuta M. — respondeu ele, com a voz embargada, mas firme.
Ela sorriu. Um sorriso gasto. Ainda assim, perigoso.