um rugido incendiário feito de trapos e balas perdidas
Agosto 02, 2004
eram já quase um poema as flores, o amor e a saudade, quando um rugido incendiário, feito de trapos e balas perdidas, partiu da súbita compreensão e avançou, como um relâmpago, contra as palavras tão bem colocadas do poeta. o mar recolheu às cavernas dos poderosos, o sol brilhou para intensificar as sombras e um tridente, vermelho como para o poeta só as papoilas sabiam ser, trespassou-lhe o peito e o coração de vidro. ensanguentado, com frémitos ácidos a queimarem-lhe os dedos, adivinhou as trevas a lamberem as feridas e assustou-se com o gargantear da morte à sua volta. ter-se-á enfurecido, ou talvez compreendido por breves momentos, e, por isso, pegou numa acendalha de vergonha, juntou-lhe um curto rastilho de perdão e incendiou toda a sua obra.
dois dias depois, já as cinzas se espalhavam pelo ar como nuvens de insectos, descobriram o poeta pendurado numa corda de gritos. com o pescoço partido pela revolta e as pernas queimadas pelo desespero, com as mãos atadas pelo medo e a boca febril cheia de areia e fragmentos de poesia, estava já muito morto o pobre poeta. da sua obra, salvou-se apenas o último poema. escrito com uma pena alimentada pelo seu próprio sangue, era um poema sem métrica e sem amor, um poema sem regras e sem cores, um poema de últimas palavras que ainda hoje ardem no papel e queimam os lábios de quem as beija. um poema cheio de fome e valas comuns, feito de palavras que cegam quem as lê e ensurdecem quem as ouve. o poeta está morto, mas o poema continua vivo e não para de sangrar.